Uma viagem sonora e textual pelas memórias de Patti Smith.
Roldão Aguiar

Este texto foi pensado para ser lido acompanhado desta playlist, uma trilha sonora específica:
Em 2010, a cultuada multi-artista Patti Smith lançou um livro de memórias intitulado “Just Kids” (que no Brasil, recebeu a tradução de “Só Garotos”), em que conta a sua história ao lado do também multi-artista Robert Mapplethorpe durante as décadas de 60, 70 e 80, com quem viveu junto em Nova York. O que poderia ser apenas mais uma autobiografia de uma célebre artista acaba por se tornar um livro revelador, que não apenas explora a dramática relação de amizade e romance dos dois artistas, mas também descreve com precisão histórica a efervescente cena artística underground que florescia em Nova York nesta época.
Muito disso se deve às incríveis habilidades de Patti Smith, uma das maiores poetisas norte-americanas de seu tempo, para contar sua própria história de forma com que o leitor se transporte para o espaço e tempo daquela narração. Mas a artista também utiliza também de uma mídia além do texto para reviver e dar textura às suas memórias por todas as páginas do livro: a música.
É a música, sempre presente na vida de Patti, que dita o ritmo do livro. Ela usufrui de suas memórias sonoras para criar uma trilha sonora dentro do próprio livro, algo que vai muito além de mencionar suas próprias canções. Estas indicações sonoras não estão escancaradas na narração, pelo contrário, na maioria das vezes são nuances, detalhes encontrados nas páginas enquanto o enredo da conturbada vida da cantora se desenrola. Cabe ao leitor buscar tais referências, usando de uma mídia além do texto para criar uma ambientação perfeita para as memórias compartilhadas na obra.
Essa relação música-texto tem uma potência muito grande em algumas passagens da obra. Como quando a autora encerra o primeiro capítulo do livro, terminando de contextualizar sua chegada em Nova York, construindo uma boa imagem do que era a cidade no controverso verão de 1967:
Passei a noite observando a movimentação da St. Mark’s Place. Garotos cabeludos passeando de calças boca de sino com listras e jaquetas militares usadas, ao lado de garotas envoltas em roupas tingidas. Panfletos cobriam as ruas anunciando a vinda de Paul Butterfiled e Country Joe and The Fish. “White Rabbit” estrondeava das portas abertas do Electric Circus. [...] Foi o verão em que Coltrane morreu. O verão de “The Crystal Ship”. Crianças com flores erguiam as mãos vazias e a China lançava sua bomba H. Jimi Hendrix punha fogo na guitarra em Monterey. A rádio AM tocava “Ode to Billie Joe”. Foi o verão de Elvira Madigan, o verão do amor. (SMITH, 2010, p. 41-42)
Através de ícones e eventos marcantes da cultura pop, principalmente da música, Patti Smith vai construindo e modelando o cenário em que suas memórias se passam. O ato de ouvir as músicas citadas pela autora durante a leitura torna esses cenários e, consequentemente, as memórias relatadas na obra, mais vívidas e próximas do leitor.
A música também participa de momentos relevantes quando a autora conta sobre sua relação com Robert Mapplethorpe, o mote central do livro. Por exemplo, quando ela conta sobre as noites que os dois passavam ouvindo seus discos favoritos, ao som de Tim Buckley e Tim Hardin, dançando e depois produzindo suas artes. Ou então quando comenta que ouviu incontáveis vezes o disco “Beggars Banquet”, da banda Rolling Stones, enquanto seu parceiro e seus amigos produziam arte entre as paredes do cultuado Hotel Chelsea, dando uma trilha sonora para a grande parte do livro que se desenrola neste local. Através da música “Coney Island Baby”, da banda The Excellents, é adicionada textura e sabor (causada também devido à narração tão rica da autora) às memórias das visitas de Patti e Robert a Coney Island, tão simbólicas para o casal.
A forte relação que Patti Smith tem com a música culmina em sua própria carreira musical, e podemos acompanhar todos os capítulos dessa caminhada neste livro. Quando ela viu a banda The Doors se apresentar, viu em Jim Morrison que “também podia fazer aquilo”, ser uma estrela do rock. Quando Patti viu o The Velvet Underground ao vivo pela primeira vez, ela pôde enxergar a importância da poesia de Lou Reed para a música vanguardista da banda. Quando Jimi Hendrix conversou despretensiosamente com Patti na escadaria do estúdio Electric Lady, antes de um show de Janis Joplin, isto acendeu um fogo para transformar sua poesia em música punk, puxando os limites do que era feito na época. No seu relacionamento amoroso com Allen Lanier, suas primeiras letras foram comercializadas em música através da parceria que ela teve com a banda Blue Oyster Cult. Com Fred Sonic Smith, constituiu uma família com dois filhos e várias colaborações musicais.
Pouco a pouco, com ajuda de outros artistas e amigos, Patti Smith construiu uma forma única de expressar sua arte, o que resultou em uma obra vanguardista muito importante para a história do rock n’ roll, juntando punk e poesia, estéticas que pareciam opostas, e construindo sua escola própria. Podemos acompanhar toda esta caminhada, além de também acompanhar, em paralelo, a história e arte de Robert Mapplethorpe, eterno parceiro de Patti.
“Só Garotos” conta histórias dentro de histórias através das memórias de Patti Smith, muito bem dispostas no papel. Fazendo jus à história desta grande artista, a música, neste livro, é um personagem à parte, sempre presente, tanto como pedra fundamental do enredo como também nas entrelinhas das memórias contadas.
Referências
SMITH, Patti. Só Garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Roldão Aguiar é estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.
e-mail: roldao.silva@aluno.ufop.edu.br
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