top of page
  • midiaememoriaufop

Sobre seguir o chamado

Kaio Moreira Veloso

Robert Mapplethorpe and Patti Smith, New York City, 1969. Norman Seeff

1. Gloria in excelsis deo


Jusus died for somebody’s sins, but not mine.


Com esta frase, Patti Smith inicia o lendário disco Horses, de 1975. Herética e carregada com os desejos disruptivos de uma jovem ávida por descobrir a si mesma, distante dos valores com os quais fora criada pela instituição da família em uma cidade pequena e tradicional. Simboliza ainda o espírito rebelde e enérgico, ainda que em grande medida inconsequente e ingênuo, de uma geração que se encontrava sem referências após a dispersão da utopia hippie com o fim da década de 1960, e foi aos poucos se organizando no que ficaria conhecido como o movimento punk. Para um recém-formado no ensino médio, ainda em busca de um entendimento sobre o que fazer da vida, disco e artista lhe serviram, certeiros.


Em 2018, já não se consumia música como na década de 1970. Nada de discos de vinil, mesmo os CDs já haviam caído em desuso. Na era do streaming e da tecnologia de informação, encontrar músicas pelo Spotify ou pelo Youtube é uma atividade corriqueira, diferente das nostálgicas idas a lojas de discos, dependentes de escolhas sobre o que ouvir guiadas muitas vezes pela intuição ou pelas sugestões de vendedores e conhecidos. Pouco interessado no turbilhão de canções que dominavam as paradas de sucesso, descobri uma artista da qual nunca ouvira falar, de uma época em que jamais poderia ter vivido, tendo nascido na virada entre séculos, em dezembro de 1999, parte da entediante geração Z. Quando descobri que a tal cantora era também escritora e poetisa, tendo publicado memórias ambientadas na época que desejava tanto conhecer, o leitor compulsivo que sou desde a infância não hesitou em fazer uma rápida busca por livrarias online. Em poucos dias, chegava em casa um exemplar de “Só Garotos”, publicado em 2010, ganhador do prêmio National Book Award na categoria de não-ficção, e editado no Brasil pela conhecidíssima Companhia das Letras.


Não por acaso, decidi começar esta pequena colagem de memórias com um fragmento do disco, e não do livro, não apenas devido à música ter vindo antes da prosa, mas também porque ambos se entrelaçam no momento que considero o auge da narrativa. O processo criativo para a fotografia de capa, feita por Robert Mapplethorpe, parceiro de longa data de Patti e motivo pelo qual ela decidiu escrever “Só Garotos”, é descrito em dado momento, mostrando a grande sincronia entre os dois. Naquele momento, os grandes amigos ainda não sabiam que estavam prestes a fincar seus nomes na história da cultura pop. A frase citada surge de um poema de Smith, chamado Oath, que logo avança e se mistura a sua versão de Gloria, canção da banda Them, conhecida na década de 1960 por sua estrutura simples. Essas canções de poucos acordes, geralmente usadas para aprender violão, tiveram tanta influência em Smith quanto sua profunda devoção à literatura. Marca de sua obra, a mistura entre poesia, repleta de simbolismos e fluxos de palavras, e música enérgica, embalada pelo barulho caótico da guitarra elétrica, parece traduzir um sentimento que ultrapassa gerações.


Penso em minha própria criação, muito próxima da que Smith e Mapplethorpe tiveram, explicada em “Só Garotos”, ainda que com as marcas de sua época e localização. Montes Claros, município no qual nasci e cresci não me parece muito diferente da Nova Jersey onde a pequena Patricia foi criada. Com a façanha de serem grandes e pequenas ao mesmo tempo, tratam-se ambas de cidades com um desenvolvimento econômico voltado, sobretudo, à atividade industrial. No entanto, não possuem a movimentação cultural de São Paulo ou Nova York, sendo ainda locais com presença da religião como força motriz da vida de boa parte de seus habitantes, que apesar de empregados permanecem pouco abastados, além de apresentarem uma baixa abertura à diversidade – cultural, religiosa, identitária, sexual. Não é, portanto, estranho que a juventude (sobretudo quando se percebe na diferença perante os valores locais) em locais como estes, não veja a hora de distanciar-se do ninho, a fim de conhecer o que mais o mundo tem a oferecer, seja lá o que isso signifique.


Apesar de ter sido uma criança imaginativa nas brincadeiras infantis, sensível aos detalhes do mundo a seu redor e encantada pelos livros, de Peter Pan à poesia de Rimbaud, Smith abandonou os estudos para trabalhar em uma fábrica, ficou grávida aos 19 anos e sofreu com o julgamento dos vizinhos, entregando a criança para a adoção logo após o nascimento. Percebendo que jamais teria uma vida que a completasse caso permanecesse com os pais e os irmãos, foi para Nova York portando apenas um livro de poemas e roupas brancas para trabalhar como garçonete. O dinheiro que tinha era insuficiente até mesmo para a passagem de ônibus, que só conseguiu comprar através de um furto que, de tão inocente, sequer parece uma ação criminosa.


Contrariando meu melhor juízo, peguei o dinheiro mas deixei a carteira no guichê das passagens na esperança de que a dona pelo menos viesse procurar o medalhão. Não havia nada ali que revelasse a identidade dela. Só posso agradecer, como tenho feito comigo mesma muitas vezes ao longo dos anos, essa benfeitora desconhecida, foi o sinal de boa sorte de uma ladra. Aceitei a doação da pequena carteira branca como a mão do destino me empurrando para a frente.(p. 32)

Reconheço-me na pulsão por mudanças, simbolizada pelo movimento proposital de saída de casa que, em meu caso, teve relação com a escolha em fazer um curso superior não disponível na instituição pública de minha cidade natal. Embora a ruptura com a segurança do lar não simbolize uma separação completa da família, não deixa de haver um sentimento de afastamento desejado. Como diversos outros jovens, muitos dos quais se mudam de cidade para estudar e/ou trabalhar, tal fase da vida é marcada pela busca de uma identidade autônoma, embora este movimento seja ainda permeado pelas memórias e experiências de vida acumuladas, servindo ora como âncoras em meio a um mar de incertezas, ora como ponto do qual se afastar. Não por acaso, muitos são os que se abrem a novas aventuras e visões de mundo neste momento, abertos para as possibilidades que até então não haviam tido a chance de conhecer. Foi o que aconteceu com Patti e Robert. Foi o que aconteceu comigo.


Longe de passar pelas situações delicadas enfrentadas pela dupla, que sobreviveram na cidade grande com trabalhos mal pagos, onde muitas vezes faltou dinheiro e comida, me lembrei de sua história quando me vi sozinho em meu pequeno quarto, em uma casa que não a dos pais. Todo o processo de encontrar um local e fazer coisas “adultas”, como ir ao banco, pegar ônibus para destinos desconhecidos e resolver demandas cotidianas sem a superproteção parental me lembrou do momento em que Patti e Robert, apresentados por intermédio de um amigo em comum, decidiram alugar juntos um apartamento duvidoso, que reformaram com esmero a fim de torná-lo um lar.


Desenvolvendo um relacionamento profundo, ambos passaram a se apoiar enquanto se descobriam como indivíduos e como artistas, e criaram um ambiente doméstico em que pudessem ser criativos. Apesar de terem se envolvido também romanticamente, Mapplethorpe começou a se descobrir homossexual concomitantemente ao aprimoramento de seu senso estético. Começando com ilustrações e colagens a partir de revistas eróticas masculinas, o ápice veio quando viajou com amigos e se envolveu com a cena gay sadomasoquista. Similarmente a Patti, cuja mãe era testemunha de Jeová, “o menino que amava Michelangelo” (p. 254) teve uma infância regrada pela religiosidade de sua família, criado nas bases da fé católica, ao ponto de ter sido coroinha da igreja quando criança. Tal encontro forçado com a fé teve nele um efeito de gosto estético pelos rituais e pela forte relação com as imagens. Quando se aproximou de temas como o ocultismo e se tornou um fotógrafo reconhecido, sobretudo por retratos de nus ousados, a impressão que fica é a de um garoto que se rebelou. Na verdade, Mapplethorpe não buscava desagradar sua família, mas, apesar de lidar com conflitos internos, sentiu a necessidade de ir de encontro à sua própria identidade dissidente.


“Estávamos nos desenvolvendo com necessidades diferentes. Eu precisava explorar o mundo para além de mim mesma e Robert precisava buscar dentro de si. Ele havia explorado o vocabulário de seu trabalho, e, conforme esses componentes mudavam e se transformavam, ele estava na verdade criando um diário de sua evolução interior, anunciando a emergência de uma identidade sexual reprimida. [...] Ele fora muito tímido e respeitoso e receoso demais para falar sobre essas coisas, mas não havia dúvida de que ele ainda me amava, eu o amava.” (p. 78)

Minha memória mais tenra de infância se passa quando estava matriculado nos anos iniciais de ensino infantil, em uma antiga escola católica. A rotina envolvia orações coletivas no pátio, atividades com histórias e ilustrações bíblicas, apresentações teatrais na Páscoa e na época de Natal, e idas à capela, onde uma luz tremeluzente em um canto indicava a presença de deus vivo. Fui catequizado e passei pelos rituais sagrados; frequentei a igreja, acompanhando a fé compartilhada pela família. Ainda assim, desde criança, nunca tive uma compreensão sobre os mistérios da fé, e apesar de todos os esforços, não desenvolvi um interesse genuíno pelas atividades da igreja, as mesmas que uniram meus pais e deram início ao núcleo familiar ao qual pertenço. Com a adolescência, comecei a me questionar sobre crenças estabelecidas e discursos que circulavam em lugares como a escola e a igreja. O resultado disso nunca foi esclarecimento, apenas culpa, pois fui ensinado que questionar a deus é uma heresia, e que todos aqueles que não o agradarem, queimarão no fogo aceso do inferno. O rock’n roll foi associado pelo senso comum à adoração de satã, à irreverência e a toda forma de pecado e ofensa. Mas foi justamente com o som de guitarras e letras com intensas expressões de revolta, melancolia e desejo que me identifiquei nos anos que se antecederam a um “sair do armário” inesperado tanto para meus progenitores quanto para mim mesmo. Em casa, Patti dançava ao som dos poucos discos a que tinha acesso.


“Adão não rogou nenhuma praga em mim/ Eu abraço Eva/ e assumo toda a responsabilidade/ por cada carteira que eu roubei/ má e malandra/ cada canção do Johnny Ace/ que eu badalei/ muito antes da igreja torná-lo limpo e direito/ Então Cristo/ estou te dando adeus/ estou te demitindo esta noite/ eu posso fazer minha própria luz brilhar/ e da escuridão também posso gostar/ você foi amarrado a meu irmão/ mas pra mim sou eu que traço a linha no chão/ você morreu pelos pecados de alguém/ mas não pelos meus” (Oath, de Patti Smith)1

2. Chelsea Hotel x E. Hostel


Nos anos 60 e 70, Nova York não era a cidade das luzes conhecida pelo imaginário popular. Na verdade, tratava-se de uma metrópole perigosa e repleta de problemas que ainda existem, apesar da fantasia construída produzida pelo cinema e pelo marketing. Quando, em uma viagem feita aos 15 anos de idade, pisei nos conhecidos pontos turísticos da “cidade que não dorme”, fui incapaz de imaginar que, para além dos telões da Times Square e da neve que cobria toda a área do Central Park, diversas histórias de vidas surpreendentes haviam se passado entre ruelas e prédios que avistei apenas com o canto do olho, distraído pelas futilidades esperadas de um turista médio. Longe da agitação urbana de uma metrópole, Mariana, por outro lado, é uma cidade pequena, conhecida principalmente pelo turismo histórico, dado o seu passado e arquitetura coloniais, e pela intensa atividade de mineração em seu entorno.


Ainda acho curioso como alguém que sonhava acordado com a vida em uma capital encontra-se aos 18 anos na vida pacata de um município com cerca de 61 mil habitantes. Em nível de comparação, Montes Claros possui mais de 413 mil. Não por isso, a experiência deixou de ser prazerosa e marcante. A principal diferença é que enquanto a Universidade Federal de Ouro Preto ocupou um lugar central nas atividades das quais participei nos últimos quatro anos, em Nova York, Patti e Robert, distantes de qualquer formação acadêmica, viveram um momento importante para a história cultural estadunidense. Artistas como Andy Warhol atingiam popularidade, atraindo atenções da imprensa e de admiradores, enquanto na vida noturna novas bandas surgiam, apresentando-se em espaços como o bar CBGB, descrito no livro como “um clube na rua dos oprimidos que atraía uma gente estranha que gostava de artistas ainda desconhecidos”. Apesar de histórico, tendo servido de palco para nomes como Television, Blondie e a própria Patti Smith antes do sucesso comercial, o CBGB não existe mais, como tomei conhecimento em uma rápida pesquisa no Google, na época em que li sobre ele pela primeira vez, já planejando uma peregrinação. Em Mariana, também tínhamos nossos bares, como o sujo “Snooker”, o moderno pub “Fábrica”, e o Sagarana Café Teatro, local em que, apesar de ser pouco adepto à vida noturna, estive presente na última noite antes de ser fechado por ordem judicial devido a reclamações constantes de barulho pela vizinhança.


Frequentando uma cena efervescente, Patti e Robert logo começaram a conhecer gente que, de uma forma ou de outra, teria impacto no futuro de ambos, seja com propostas de trabalho, seja com encontros que, de tão inusitados, poderiam bem ser uma fabulação das distantes memórias de sua narradora. A aparência andrógina de Smith chamava a atenção dos frequentadores dos locais em que costumava ir e, no livro, ela relembra quando conversou com Allen Ginsberg, um dos nomes mais importantes do grupo de poetas conhecidos da geração beat, que a influenciaram diretamente, assim como a seus contemporâneos da cena underground.


“Peguei minha bandeja e depositei as moedas, mas o vidro não abriu. Tentei de novo sem sorte e então reparei que o preço havia subido para 65 centavos. Estava desapontada, para dizer o mínimo, quando ouvi uma voz dizer: "posso ajudar?".
Virei-me e ali estava Allen Ginsberg. Nunca havíamos nos encontrado antes, mas sem dúvida era um dos grandes poetas e ativistas do país. [..] Allen acrescentou os dez centavos que faltavam e ainda me pagou um café. Sem palavras, acompanhei-o até a mesa, e então ataquei o sanduíche.
Allen se apresentou. Ele falava sobre Walt Whitman e comentei que havia sido criada perto de Camden, onde Whitman fora enterrado, quando ele se inclinou para mim e olhou com mais atenção. "Você é menina?", perguntou.
"Sou", falei. "algum problema?"
Ele só deu risada. "Desculpe. Achei que você fosse um menino bonito."
Então entendi tudo.
"Bem, isso quer dizer que devo devolver o sanduíche?"
"Não, aproveite. O engano foi meu."
[...] Algum tempo depois, Allen se tornou meu bom amigo e professor. Vez por outra lembramos de como foi nosso primeiro encontro, e ele uma vez me perguntou como eu descreveria quando nos conhecemos. "Diria que você me deu de comer quando eu estava com fome", respondi.” (p. 119)

Mas o momento em que Patti e Robert provavelmente colecionaram a maior parte de encontros ilustres e inusitados foi quando moraram no Hotel Chelsea, outro nome lendário da história nova-iorquina. O lugar tornou-se conhecido por ter sido a casa de diversos artistas, boêmios e outras figuras excêntricas da cena cultural, como a pintora Vali Myers, que tatuou um pequeno raio no joelho de Smith, e Janis Joplin, musa hippie e uma das participantes do festival de Woodstock. Naquele momento, Smith sequer imaginava que um dia teria um contrato de gravação e, pouco depois, um disco de sucesso. Após um período em Paris, Patti retorna a Nova York e encontra Robert em um estado deplorável, bastante doente. Saindo de um prédio decadente, os dois dirigiram-se ao Chelsea com seus desenhos em uma mala, pois ouviram falar que poderiam alugar um quarto em troca de obras de arte.



Visão interna do livro “Só Garotos”. Foto autoral

Apesar de existir em Mariana um hotel desativado que serve de lar para alguns estudantes, acredito que não chegue perto da atmosfera que tornava o Chelsea tão fora do comum. De minha parte, encontrei meu local de moradia estudantil em um pensionato, carinhosamente apelidado pelos estudantes que ali moravam como E. Hostel, citação ao nome do dono, ainda que ele, um senhor de idade dono de diversos imóveis na cidade, provavelmente não saiba disso. Fui apelidado de Harry Potter por um colega, devido ao fato de meu primeiro quarto ter sido um cubículo construído debaixo de um lance de escadas. Fui feliz ali, até o dia em que fui pego pelo dono da casa quando levei sem avisar meu primeiro (e único) interesse amoroso para assistir comigo “O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain”. Dali em diante, o figura me parecia cada vez mais como um personagem ranzinza de desenho animado, mas as coisas melhoraram quando, no ano seguinte, pude ir para um quarto maior, com uma janela voltada para a Praça Minas Gerais. O centro de Mariana me acordando todas as manhãs entre conversas, trânsito e sinos de igreja. Os momentos que vivi e os amigos que fiz ali, guardo com apreço na memória, ainda que esta seja perpassada pelos esquecimentos, fabulações e pela nostalgia. Dois anos de quarentena depois, as cenas que surgem em minha mente se parecem com cortes de um filme antigo. Uma mistura de doçura e saudosismo, tal qual as lembranças do Chelsea.


3. Um Sonho de Vida



Acima de qualquer problema financeiro ou de saúde, o que motivou Patti e Robert cotidianamente foi o desejo alucinante que ambos nutriam pelo ato de criação. Uma poeta em construção, Patti escrevia de forma compulsiva e se aventurava no desenho, enquanto auxiliava Robert em suas colagens, cujos temas variavam, refletindo as fases pelas quais passava. Tempos depois, Robert se encontraria finalmente na fotografia e Patti faria turnês pelo mundo cantando músicas como “Because The Night”, parceria com Bruce Springsteen e seu maior sucesso. Em certo momento, foi Patti quem sustentou a ambos como vendedora em uma livraria. Robert estava desanimado com seu trabalho e por insistência da amiga e amante, pediu demissão, passando a se dedicar inteiramente à sua criatividade. A busca de ambos pela carreira artística é surpreendentemente desprovida de um propósito egoísta ou material. Às vezes, questiono-me se em um mundo movido por metas e recompensas, há quem ainda viva por paixão a alguma coisa. O caminho, claro, foi tortuoso.


“Nos períodos em que me sentia por baixo, perguntava-me qual era o sentido em criar arte. Para quem? Estávamos animando Deus? Estávamos falando com nós mesmos? E qual era a meta final? Ter a própria obra engaiolada nos grandes zoológicos da arte — o Modern, o Met, o Louvre?
Eu ansiava por honestidade, mas encontrava desonestidade em mim mesma. Por que se comprometer com a arte? Pela autorrealização ou pela arte em si mesma? Parecia um capricho somar-se à massa de excessos, a não ser que isso oferecesse iluminação.
Muitas vezes eu me sentava e tentava escrever ou desenhar, mas toda aquela agitação maníaca nas ruas, somada à Guerra do Vietnã, fazia meus esforços parecerem sem sentido. Eu não conseguia me identificar com movimentos políticos. Quando tentava participar de algum, sentia-me tomada por outra forma de burocracia. Perguntava-me se alguma coisa que fazia tinha importância.
Robert tinha pouca paciência para esses meus acessos de introspecção. Ele parecia nunca questionar seus impulsos artísticos, e seguindo seu exemplo aprendi que o que importava era o trabalho: a cadeia de palavras impulsionadas por Deus que virava um poema, a trama de cor e grafite rabiscados sobre a folha que amplificava os movimentos Dele. Alcançar com o trabalho um equilíbrio perfeito de fé e execução. A partir desse estado de espírito, surge uma luz, carregada de vida.” (p. 67)

Décadas mais tarde, no Norte de Minas, um menino, ainda longe de conhecer tais memórias, lê mais um livro de ficção fantástica e se pergunta se um dia escreveria coisas tão inacreditáveis quanto J.K. Rowling, Júlio Verne ou Lewis Carroll. Tímido e estranho aos olhos dos colegas, esse menino encontrou refúgio nos livros e, em vez de jogar futebol, passava os recreios na biblioteca, como única companhia humana de sua simpática bibliotecária. Primeiro veio Monteiro Lobato e o Sítio do Pica-Pau Amarelo, depois, Harry Potter e demais séries fantásticas, depois os livros de distopias e mistérios; os clássicos da literatura brasileira; os poemas enigmáticos de Ana Cristina Cesar; a prosa poética de Caio Fernando Abreu; os haicais e o concretismo de Paulo Leminski; o mergulho em si mesma de Clarice Lispector. De fuga, a leitura passou a modo de compreender o mundo. De atividade escolar, a escrita passou a um modo de expressão de um aluno que pouco falava em sala de aula. “Quais profissões seguir para quem gosta de escrever?”, “Como trabalhar com escrita?”, “Com o que trabalham os escritores?”, foram algumas das perguntas feitas àquele que tudo sabe, o Santo Google. Não foi por acaso que o menino decidiu cursar Jornalismo no ensino superior. Apesar de ter levado outros fatores em consideração, pesou o fato de muitos dos autores lidos até então terem também sido jornalistas, como forma de ganhar a vida escrevendo cotidianamente. Ainda que distinta da escrita literária (esta que permite falar de mim mesmo na terceira pessoa, correndo ainda o risco de parecer brega), a carreira jornalística foi a que pareceu uma possibilidade de construir uma vida guiada pelo interesse e habilidade com leitura e escrita. E assim tem sido, construindo aos poucos caminhos almejados como redator, revisor, editor.


O que fica para mim como identificação e proximidade maior com Patti e Robert é justamente a devoção febril ao chamado da criação. Ainda alimento em mim o sonho antigo de me tornar escritor e, a cada novo texto, seja poema, reportagem ou artigo, sinto que me aproximo aos poucos desse propósito. Em uma entrevista, Patti afirmou que se pudesse escolher uma coisa na vida, seria a literatura. Resposta exata de leitor e admirador 52 anos mais novo. Inspiro-me nela e em sua história intensa e comovente com Mapplethorpe para lidar com um futuro incerto. Assim como Robert encontrou sua musa, posso afirmar que tenho inspirado pelo menos um punhado de poemas. E assim como Patti fez de Robert o primeiro ouvinte de algumas de suas composições, tenho meu leitor beta, atento, crítico e apaixonado.


Como dito anteriormente, é de Mapplethorpe a fotografia que estampa a capa do álbum de estreia de Smith, cuja primeira frase dá início a este texto. A polaroid que apresenta Smith em uma camisa branca, com um paletó jogado por cima do ombro, à la Frank Sinatra, é mais do que icônica – é símbolo da parceria entre dois artistas amantes do ofício que escolheram (ou que os escolheu) e que permaneceram a cultivar grande afeto um pelo outro, mesmo após se envolverem romanticamente com outras pessoas, e quando Patti decidiu se afastar da cidade grande e viver uma vida pacata, para ter sua própria família, continuar a escrever e, enfim, fazer as pazes com deus.


Infelizmente, o conto de fadas punk não termina com “felizes para sempre”. Robert Mapplethorpe foi uma das milhares de vidas perdidas em meio à pandemia de HIV na década de 1980, quando estava no auge de sua fama, usufruindo de um bom estúdio e exposições com seus marcantes trabalhos fotográficos. Seu parceiro e mecenas faleceu pela mesma razão, e em seu último contato pessoal com Patti, grávida de seu segundo filho com o marido, o músico Fred ‘Sonic’ Smith, já era visível seu estado de debilidade. Em dado momento da conversa, ele diz a ela que, caso perdesse o marido, poderiam voltar a morar juntos.


“ ‘Não vai acontecer nada com o Fred’, garanti. Ele virou o rosto.
‘A gente nunca teve filho’, disse ele, sentido.
‘Nossos filhos foram nosso trabalho.’ ” (p. 251)

Em seu disco “Dream of Life”, lançado em 1988, Patti faz homenagens a Robert, meses antes do falecimento de seu grande amigo. Há nesse disco uma canção que é possivelmente minha favorita dentre sua discografia, celebrada pela crítica pelo alto nível poético de suas composições. Trata-se da faixa título, uma ode ao amor compartilhado com quem se divide toda uma vida. Penso no futuro que desejo e quase consigo senti-lo, ultrapassando o mundo dos sonhos, colidindo com o mundo real. De forma muito similar, Patti aprecia o caminho turvo entre realidade e ficção em seus livros mais recentes. Para “Só Garotos”, memórias escritas como cumprimento de uma promessa feita a Robert em vida, de que contaria a história dos dois, Smith encerra desejando ser capaz de construir uma ponte através de suas palavras para superar a implacabilidade da morte.


Penso em tudo isso, no lugar de onde vim e todos os caminhos que desejo percorrer. As coisas que minha imaginação não é ainda capaz de formular, e em momentos já gravados pela minha própria memória, traçando paralelos com os heróis marginais do livro em minha estante. Tive noites em que me lembrei da vida animada e noturna de Nova York, como quando fui à Casa da Ópera em Ouro Preto para ver outra de minhas escritoras favoritas, Conceição Evaristo, que, aliás, foi quem me inspirou a escrever este texto, baseado em sua própria releitura e aproximação afetiva de “O Diário de Anne Frank”. Sei que ainda tenho muito a discutir com deus, mas tenho devoção. São os momentos mais simples do cotidiano, em que rabisco versos em um papel ou leio um romance, entre um trabalho acadêmico e uma aula da graduação, que me lembram de meu desejo. Construir uma ponte para o sonho de vida. Atendendo ao chamado, tal como fizeram aqueles dois.


“Em um dia de veranico vestimos nossas roupas favoritas, eu com minha sandália beatnik e uma velha echarpe, e Robert com suas amadas miçangas e o colete de ovelha. Pegamos o metrô até a West Fourth Street e passamos a tarde na Washington Square. Tomamos café de uma garrafa térmica, vendo grupos de turistas, gente chapada e cantores de folk. Revolucionários agitados distribuíam panfletos contra a guerra. Enxadristas atraíam uma multidão à parte. Todos coexistiam naquele zum-zum de diatribes verbais, bongôs e cachorros latindo.
Estávamos andando em direção à fonte, o epicentro da ação, quando um casal mais velho parou e ficou abertamente nos observando. Robert gostava de ser notado, e apertou minha mão com carinho.
‘Oh, tire uma foto deles’, disse a mulher para o marido distraído, ‘acho que são artistas.’
‘Ora, vamos logo’, ele deu de ombros. ‘São só garotos.’”
(p. 50)
 

Kaio Moreira Veloso é estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.


56 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page