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“Quando nós morremos, nós nos tornamos histórias”*

Atualizado: 14 de abr. de 2022


Beatriz Araújo

Eu saí do meu quarto para falar com minha mãe no dia 26 de novembro de 2020. Ela tinha acabado de terminar uma chamada quando se virou para mim. Os olhos marejados, a boca trêmula e as bochechas vermelhas entregaram tudo: meu avô morreu.

Seu Wilson teve um infarto silencioso. Não é do tipo que se vê em um drama, quando a pessoa coloca a mão no peito e cai de forma teatral; é mais como um mal-estar ou um enjoo que não passa. Então meu pai, Marco Antônio, filho de Wilson, o levou para fazer exames. A médica logo mandou internar. Algumas semanas depois, quando Marco foi a uma visita periódica, não pôde entrar porque algum paciente estava em atendimento de emergência. Era o meu avô. No momento que lhe contaram, meu pai pegou o celular e ligou para a minha mãe.

A pior parte não foi ter que contar a notícia para a minha irmã por telefone, já que ela estava em outra cidade. Não foi ter que contar para minha tia, precisar buscá-la, levá-la para sua casa e, durante o caminho, tentar acalmar sua crise de ansiedade tão forte que não conseguia fazer nada além de balbuciar poucas palavras e balançar a cabeça. Também não foi só sentir toda a dor do luto no meio da noite, por volta das três da manhã, abraçando a mim mesma e tentando não chorar muito alto. A pior parte, com toda certeza, foi ter que contar para minha avó, dona Edna, uma mulher de 73 anos que passou mais de trinta ao lado de seu Wilson.

Um dos raros sorrisos de meu avô. Eles quase sempre apareciam quando estava ao lado da minha avó

Quando chegamos na casa daquela senhora, ela estava tomando café com leite e tinha um pedaço de pão mordido na mão. Levantou o olhar para nós e, esperta como é, balançou a cabeça entendendo tudo. Mesmo assim, disse: “Oi, tudo bem?”. Dona Edna já sabia a resposta, sua voz saiu arrastada e grave demais. Nós a levamos para a sala e a colocamos numa poltrona confortável. Minha mãe entregou um guardanapo para ela e eu fiquei ao seu lado, segurando seu braço.


Vi minha avó esconder o rosto naquele pequeno pedaço de papel para chorar, se encolher toda e balançar as pernas algumas vezes, como quando uma criança não consegue se controlar e sente que precisa bater o pé no chão ou balançar todo o corpo. Mas, além do gesto, dona Edna não parecia mais nada com uma criança, seu choro era o de uma mulher idosa que passara décadas ao lado do marido. Minha avó é uma das pessoas mais fortes que eu conheço, sempre a levei como exemplo e me apoiei em sua imagem, porém, naquele dia, foi ela quem se apoiou em mim.


“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”.
José Saramago

No livro escrito por Joel Candau, Memória e identidade, a relação entre esses conceitos é discutida de forma que nos faz questionar se a memória vem antes da identidade, ou vice-versa, ou, ainda, se os dois coexistem de certa forma.


A memória construiu a identidade? Ou a identidade que construiu a memória?

De acordo com a mitologia grega, para uma pessoa reencarnar, ela precisava beber as águas do rio Lete a fim de perder todas as memórias, assim sua alma se tornaria um novo receptáculo para outras experiências e lembranças. Consequentemente, a memória é que constrói a identidade.


Em contrapartida, as crenças budistas oferecem um outro ponto de vista. A morte é vista como uma forma de recarregamento da alma, já que toda a energia foi gasta no tempo em vida. Quando a alma estiver pronta, ela partirá para um novo corpo e também não terá lembranças das reencarnações anteriores, porém seu “eu interior” continua o mesmo, já que levando em conta as crenças dos fiéis, o espírito de uma pessoa é imutável. Dessa forma, a identidade é que constrói a memória, chegando até a transcendê-la.


“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
O Pequeno Príncipe

Buñuel costumava dizer que, para reconhecer o valor da memória, é preciso perder parte dela, ou talvez perdê-la completamente. Quem já sofreu com o luto sabe que, infelizmente, essa frase é verdade. No momento em que sentimos a saudade de alguém que amamos e que nunca mais iremos ver, é quando temos absoluta certeza da importância dessa pessoa. Esquecemos o cheiro dela, a cor dos olhos, o timbre da voz, a sensação do abraço, o ecoar da risada. São pequenos detalhes, mas que fazem diferença. Mas não esquecemos as histórias. Lembranças simples que amenizam a dor e colocam um sorriso nostálgico no rosto.


Comecei escrevendo esse texto como forma de tentar compreender o luto. Perdi meu avô há mais de um ano, a dor diminuiu e a saudade prevaleceu. No entanto, agora, prefiro terminá-lo como uma homenagem, afinal, as lembranças o mantém ainda por perto, é o que me restam. Tenho a história arquivada em forma de fotos e vídeos, mas prefiro compartilhar um pouquinho da história oral (ou escrita, nesse caso) com um outro texto sobre dizer adeus à infância e sobre superação:

A Casa Amarela


A Casa Amarela tinha a cor verde. Meus pais se mudaram pra lá quando minha irmã nasceu. Foram os três mais uma cadela grande e bonita chamada Rubra. Ficaram alguns anos e depois compraram um apartamento, quando minha mãe ficou grávida de mim.


Momentos de família que nunca se perdem

A Casa Amarela continuou verde quando meus avós se mudaram pra lá depois dos meus pais. Minha bisavó também foi junto, mãe da mãe do meu pai, uma velha do interior do Nordeste, engraçada e boa contadora de histórias. A família se reunia lá pra fazer churrasco nos finais de semana, comemorar aniversários e feriados. As crianças, meus primos, eu e minha irmã, corríamos de um lado para o outro, brincando até cansar.

A Casa Amarela finalmente foi pintada da cor certa. Meus avós e minha bisavó ainda moravam lá. Passei boa parte da infância visitando meus velhos, passando o dia como companhia e às vezes ficava mais tempo. Minha avó preparava arroz, feijão e linguiça - minha comida preferida. Meu avô contava algumas histórias de seus irmãos, ele era um homem sério, mas vivia sorrindo para mim e para minha irmã.


Já andei de bicicleta pelo quintal da casa. Já enchemos uma piscina inflável rosa lá e brincamos com a mangueira. Já comi muito bolo da minha avó. Já tomei muitos cafés da tarde com a minha bisavó. Já comi jaca da árvore da minha avó. Já brinquei de bola e joguei ela no telhado. Já vi minha avó amarrar a ponta de uma linha no meu dente de leite, a outra ponta em uma porta aberta e dizer que que vai fechar no três, ela sempre dizia assim: "No três, a vó fecha. Um. Dois…". Fechava a porta antes do três e o dente ia junto.


A Casa Amarela sofreu mais uma mudança e agora suas paredes têm cor de pedra, aquele tipo de pedra meio amarronzada. Na primeira vez que vi a casa depois da reforma, lembro de achar que parecia um castelo já que era cercada por muros altos e me lembravam dos filmes de cavalaria. Lembro que imaginei minha avó como rainha e meu avô como rei. Ele era descendente de uma antiga família nobre alemã, então até que fazia sentido na minha cabeça de criança. Continuei brincando no quintal da casa. Continuei comendo a comida da minha avó. Continuei vendo meu avô sorrir e, de vez em quando, dar risada. Lembro que sempre achava a risada dele estranha, mas também única.

Eu cresci. Já não sou mais criança e a Casa Amarela já não é mais amarela. Minha bisavó começou a ter problemas psiquiátricos e precisou se mudar. Meu avô morreu. A última vez que o vi, foi no meu aniversário de 18 anos. Ano de pandemia, então sem abraços e nem beijos; a gente se cumprimentou com um toque de cotovelos. Não teve um único aniversário meu que meus avós não receberam um pedaço de bolo, esse não podia ser diferente. Ficamos no quintal em que eu brinquei tanto, onde eu cresci. Depois fomos pra cozinha com os pedaços de bolo e docinhos. Meu avô apagou todas as luzes e acendeu uma pequena lâmpada verde, nós seis cantamos parabéns. Ele guardou a luzinha na caixa e me deu, disse que não era muito, mas que era de coração. Depois disso, meu avô foi embora e minha avó se mudou.

A Casa Amarela que já foi verde, já foi amarela e agora não é mais, não tem mais moradores. Está vazia. Todos cresceram e se mudaram.

Por que eu chamo de Casa Amarela sendo que ela não é mais amarela? Acho que é por causa da infância. Uma parte da minha vida sem muitos problemas e preocupações. Só tenho boas lembranças daquele lugar e o que mais me marca até hoje é a cor amarela. Não um amarelo chamativo como o sol, é aquele tom mais pálido e suave. Gosto desse tom de cor. Gosto da Casa Amarela. E amo ainda mais cada uma das pessoas que morou ali. Amo lembrar de todos os natais, anos novos, páscoas e aniversários. Amo lembrar dos almoços e cafés da tarde, nunca gostei de café com leite, mas, na infância, gostava quando a minha avó molhava o pão com manteiga nele e dava pra mim. Amo lembrar dos discursos antes das refeições que meu avô fazia. Eu sinto vontade de sorrir só de pensar que risadas e conversas ecoam pelos quartos e corredores. Eu sinto vontade de sorrir só de pensar que vidas, ou melhor dizendo, histórias completas e incompletas são guardadas e protegidas por uma simples casa que já foi amarela algum dia.


* A Maldição da Residência Hill



 

Beatriz Oliveira nasceu em 2002, na cidade de Santos, São Paulo – Brasil, onde cresceu com os pais, a irmã e três cachorros, até se mudar para Minas Gerais a fim de estudar Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto. Sempre gostou muito de ler e começou a escrever desde os 12 anos (uma história que ainda pretende terminar algum dia) sendo incentivada principalmente por sua professora de português daquela época. Publicou um conto no livro Meninas que Escrevem, em 2020, e desde então não tem parado de se apaixonar cada vez mais pelo mundo literário.


Instagram: me.beatus.ao

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