Evelin Rodrigues
No futuro, todos têm acesso a um implante de memória que grava tudo o que os seres humanos fazem, veem e ouvem.
“MEMÓRIA É PARA A VIDA”
Se eu te dissesse que é possível armazenar suas memórias em uma galeria interna ligada ao seu sistema nervoso, você ficaria no mínimo intrigado, não é mesmo?
Mas como exatamente esse “dispositivo” funcionaria? Provavelmente, em seguida, você me faria essa pergunta. E é bem simples. Pense em seu aparelho smartphone e em todas as funções disponíveis nele: armazenamento de dados, de imagens, de áudios, de vídeos e outras múltiplas funções.
Pronto! Esse novo chip vai funcionar como uma versão de um smartphone, voltado para o registro de todas as suas memórias. Pode-se pensar em um HD de memórias, em seu termo literal, que permite acesso instantâneo a tudo o que você registra com o olhar durante o dia. Fascinante, não é?
Esse é o espaço futurista construído no terceiro episódio da primeira temporada de Black Mirror. Uma realidade não tão distante de nós, dado o aparato tecnológico disponível hoje, em que o ser humano tem à sua disposição todo o seu dia, como um filme possível de ser acessado a qualquer momento.
De antemão, parece pois um recurso indispensável no cotidiano do homem, por oferecer algo que é tão cobiçado em vida: o controle de acesso às memórias, distanciando assim o esquecimento, cada vez mais indesejado atualmente. Entretanto, pensando em tudo que a era digital representa para a humanidade hoje e todo seu avanço célere, qual seria a implicação desse processo?
Estamos falando aqui de um recurso que poderia alterar completamente as formas de viver, de socializar, de experienciar, de deixar parte da nossa humanidade para trás, armazenada em mais um aparelho digital.
Por isso, é necessário lembrar de Joel Candau em seu livro “Memória e identidade”, que pontua: “A memória ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada”. Nossa memória é a nossa identidade. Ao longo da vida, as apreensões providas pelas experiências vividas modelam o ser e sua essência. A construção da nossa identidade é alimentada pela memória a partir das referências e processos de socialização, aos quais os indivíduos têm acesso por meio das lembranças.
É válido pensar, então, até que ponto a nossa identidade e a relação tão íntima com nossa memória existiria?!
ACERVO DE MEMÓRIAS
A relação estabelecida na trama do episódio se aproxima, de certa forma, dos questionamentos levantados acima. Dado o contexto, o espaço é preenchido em torno de um casal e sua relação. No avançar do episódio, cresce um tensionamento das interações do casal por ciúmes, o que leva o personagem principal a uma obsessão de encontrar vestígios de uma traição e analisar cada expressão e movimentos da esposa em suas memórias armazenadas. A perda de controle do personagem ultrapassa os limites pessoais de qualquer relação. Isso devido, principalmente, a seu acesso ilimitado aos registros que são passados como um filme, em vários momentos, pelo personagem. Independentemente do resultado final da história, se ela o traiu ou não, o que esse recurso memorial deixa evidente acerca dos impactos na nossa camada social, são os limites que o ser humano pode atingir com a tecnologia.
A complexidade da nossa mente com a memória oferece um aparato identitário de pertencimento, um “mecanismo” que por si só é capaz de fornecer experiências e sentimentos inimagináveis para a construção do ser. Ao compactar tudo isso em um dispositivo, é extraído uma parte da nossa existência e humanidade.
Nesse viés, “esquecer detalhes é necessário à vida social” (MARIANO, p. 199), o esquecimento também constrói a personalidade e isso é um processo natural, feito de forma consciente ou mesmo inconsciente pelo indivíduo.
A memória pessoal está em constante transformação junto a identidade e vice-versa, sujeitas ao “fluxo do tempo” ou fluxo atemporal, por assim dizer.
Qual seria então o sentido de uma memória, se ela estivesse disponível constantemente para acesso?
Caberia, aqui, novas definições acerca de uma nova forma de ter memória. O processo de lembrança deixa de ser um exercício mental e passa a ser um mecanismo de busca, uma ferramenta. Essa automatização do pensamento, ao passo que seria de extrema utilidade para o mercado e o mundo capitalista, representaria a humanidade fadada ao esquecimento.
‘MERCADO’ NETFLIX
O mundo contemporâneo é palco de uma das maiores revoluções tecnológicas na história da humanidade. A nova era dos streamings, smartphones e softwares cada dia mais adaptados às necessidades humanas, marcam um ponto em que temos tudo disponível a apenas um clique de distância. Assim delineamos nossa época, no ciberespaço. Tudo está conectado, e com isso, nossas memórias são produtos valiosos para a “sociedade do esquecimento”.
Estamos cercados por ferramentas de armazenamento de memórias. Nas mídias sociais, nas galerias dos telefones, em cada espaço tecnológico há uma informação a ser guardada. A partir disso, as ferramentas disponíveis para tais interações permitem a construção e exposição de uma memória coletiva, constantemente compartilhada, ressignificada e exposta à interação.
Mas, para além disso, a plataforma de streamings Netflix, com sua série Black Mirror, constrói um espaço para reflexão que pode chegar ao tema mais absurdo da relação com o ser humano, conflitos da era digital e suas implicações no cotidiano. No caso aqui retratado, os tensionamentos de uma relação em uma sociedade em que a memória é um compartimento em um chip, são levados ao extremo. Os comportamentos do ser humano são medidos e avaliados a todo momento, basta acessar a linha do tempo e conferir tudo novamente, quantas vezes desejar.
A liberdade de escolha das nossas lembranças e memórias faz do mundo o que ele é. As pessoas transformam o mundo a partir de suas memórias. Por mais que seja instigante pensar na possibilidade de um acesso irrestrito à nossa mente é necessário avaliar as implicações que teriam na sociedade. Ademais, para além de pensar na possibilidade, vale um adendo: de certa forma já vivemos como no episódio. Temos à nossa disposição inúmeros recursos que possibilitam um acesso constante às nossas lembranças, e não seria de um todo equivocado afirmar que nosso meio se encontra conectado como uma espécie de implante, porém, em rede.
NOTAS
DALMASO, Silvana. A construção da memória nos sites de redes sociais: percepções sobre experiências no Facebook. In: Encontro Nacional de História da Mídia, 10., 2015, Porto Alegre. Anais… Porto Alegre: UFRGS, 2015
CANDAU, Joël. Preâmbulo. In: ______. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012. p. 15-19.
MARIANO, Agnes. Verdade e ficção na produção jornalística: entrevista e memória. Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 18, n.2, p. 193-205, 2015.
Evelin Rodrigues é estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.
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